Por Dra. Daniela Cardozo Mourão (UNESP)
Por causa da violência e expulsão da família, escola e sociedades, muitas mulheres trans que têm carreira, vida social e familiar, são aquelas que fazem a sua transição tardia. A minha transição de gênero ocorreu após os 40 anos. Durante este período, por desconhecimento, já que este assunto não é discutido, entendi a minha identidade de gênero como uma perversão, em que me auto condenava. Algo que teria de ser arrancado. Após todas estas décadas, finalmente tive oportunidade de entender o significado de gênero, e assim entender, que não tinha que me odiar e sofrer internamente por ser diferente.
De fato, percebi que coisas muito simples, para pessoas cis (não trans), podem ser complicados para pessoas trans. Cada vez que se vai em um lugar que se tem de apresentar um documento, como cinema, ônibus, hotéis, e mesmo consultas médicas, tem de se explicar a sua vida, sem saber como a pessoa do outro lado vai reagir. Se pensa duas vezes antes de se ir a um posto médico. Às vezes dá tudo certo, quando tudo é visto naturalmente, outras vezes nem tanto. O uso do banheiro público pode ser outro local de perigo. Independente de qual porta se entre, podem somente gritar, ameaçar ou até expulsar violentamente, fazendo você passar um grande vexame público. Não é à toa que o segundo maior transtorno de saúde para pessoas trans se relaciona ao trato urinário. Para as que têm menor passabilidade, o estar em público pode ser visto como ameaça. Como muitas já aprendem cedo na escola. Em uma situação de alto desemprego que vivemos hoje, conseguir uma entrevista ou possibilidade de vaga já é muito difícil. Para pessoas trans, conseguir passar pela portaria, ser vista como potencial candidata válida, não ser degradada nos processos seletivos pode ser uma vitória. Por isto que a 90% delas, a prostituição não é uma alternativa de trabalho, mas a única possível.
A história dos direitos humanos é recente. Composta de avanços, como a curta aurora na Alemanha da década de 20, e retrocessos. Ser LGBT+ foi ao mesmo tempo pecado, crime e doença. O motim no Café Compton, em 1966, menos conhecido que o de Stone Wall, mas seu antecedente direto, se deu quando policiais em São Francisco tentaram prender mulheres trans em uma cafeteria. Elas resistiram, e com apoio de clientes e o tumulto se propagou pela rua. No dia seguinte, manifestantes fecharam as portas da cafeteira. A história se espalhou, e inspirou manifestações de respeito e dignidade. Infelizmente é desconhecida da história a identidade desta mulher que deu início.
Nesta mesma década, no ambiente acadêmico, surge a história Lynn Conway. Ela trabalhava na IBM, e em 1968 fez a sua transição de gênero. Foi demitida e perdeu o acesso aos filhos. A Xerox a contratou, onde ela participou do desenvolvimento do VLSI, que permitiu a construção dos nossos modernos computadores, celulares, etc. Posteriormente foi contratada como professora pela Universidade de Michigan. Talvez, seja a primeira professora universitária trans da história. Somente em 2020, a IBM, hoje uma empresa que trabalha a inclusão, pediu desculpas pela sua demissão.
Somente a partir de 2009 tivemos a primeira universidade que nos deu o direito a termos um nome. Um nome que não nos levasse a constrangimentos, e a violência de negar a nossa identidade. Em 2013 tivemos a primeira professora declaradamente trans, Leilane Assunção, na UFRN, que fez sua transição aos 24 anos. Uma colega comentou: “Estávamos na cantina tomando café, sem aula, quando Leilane comentou que não tinha roupas de menina. Nessa época eu havia engordado um pouco, juntei as roupas que não cabiam mais em mim e dei a ela. Eram calças, blusas, depois que ela passou a usar saias. Leilane ficou muito feliz e, a partir daí, foi adquirindo mais confiança, mais liberdade. Após 11 anos na universidade, Leilane conquistou o direito ao nome social. Leilane morreu em 2018, vítima de complicações cardíacas, já afastada da universidade.
Tentei apenas relatar alguns casos que ouço, anônimos e históricos. Fico pensando em tantos outros, marcantes, históricos que não conhecemos e nunca ouviremos. A nossa luta pelo nosso direito de existirmos continua. Nosso lema é resistir para existir
A autora
Profa. Dra. Daniela Cardozo Mourão – UNESP – Campus de Guaratinguetá
Bacharel e Mestre em Física pela UNESP. Doutora em Engenharia e Tecnologias Espaciais pelo INPE.