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A força de ser mulher no caminho da ciência e da cultura

    Por Flavia Maria Bastos (CGB – UNESP)

    Desde criança sempre ouvi minha mãe dizer que: “o estudo ninguém tira de uma pessoa”. Filha de Adélia Maria, a mulher mais valorosa, valente, que muito amor espalhou pelo mundo e apesar do pouco estudo, tinha a sabedoria da vida. Com muito trabalho duro e muito esforço, sempre me estimulou para que eu encontrasse oportunidades de conhecimento.

    Mineira de Uberaba, veio para São Paulo jovem; foi manicure, babá e empregada doméstica; contava que quando nasci, ainda com os pontos da cesárea, ela precisou arrumar uma faxina para ter o dinheiro do gás. Amava trabalhar não importando o dia e a hora, inclusive ajudando vizinhos e amigos em situação de necessidade. Esse foi meu exemplo de mulher, animada, destemida, solidária e que continuava a desfilar em escola de samba no carnaval mesmo com os filhos já adultos.

    Minha tia Maria José, irmã do meu pai, primeira mulher da família a ir para a universidade: fez Letras Português na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) na USP, foi minha grande fonte de inspiração desde quando, aos 10 anos de idade, eu a observava atentamente enquanto corrigia as tarefas dos alunos. Formou-se em 1977 e fez mais um ano na Faculdade de Educação da USP para poder lecionar e me contava que muitas vezes ao sair da Cidade Universitária a caminho da zona leste, chegava em casa às 2 horas da manhã e às 7 horas já estava na escola para dar aula. Depois cursou Pedagogia para assumir a supervisão escolar. Pessoa discreta, essa tia sempre me disse que o esforço está na luta de vencer seus próprios obstáculos, para alcançar o seu desenvolvimento como ser humano.

    Seguindo seu exemplo, trilhei meu caminho sempre na escola pública e fui a segunda mulher da família a entrar na universidade. Como menina e adolescente negra eu sentia que tinha que me esforçar bastante para conseguir a formação que minha mãe tanto desejava. Para me preparar melhor fiz dois cursos de ensino médio ao mesmo tempo: magistério de manhã e colegial à noite; trabalhava no período da tarde e devorava apostilas de cursinho emprestadas durante os finais de semana. Eu consegui! Passei no vestibular de uma universidade pública, na área que eu gostava! 

    De São Paulo minha vida começou a ser transformada pela Unesp de Marília: cursar Biblioteconomia na Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC); passei pelo processo seletivo para moradia estudantil e ainda sendo contemplada logo no primeiro ano com uma bolsa do Programa de Apoio ao Estudante (PAE); minha tarefa era auxiliar uma docente em sua pesquisa. Começa aí meu amor pela investigação. 

    A cada ano fui contemplada com bolsas que me permitiram ter a experiência de vivenciar o dia a dia da universidade até conquistar minha bolsa de iniciação científica pelo CNPq, além de estágios que fortaleceram minha formação.

    Ao me tornar Bacharel em Biblioteconomia e Documentação retornei para São Paulo e novas experiências se multiplicaram no meu caminho. Passei alguns meses estagiando na redação da revista Superinteressante, da Editora Abril. No período em que eu era aluna realizei um estágio na Coordenadoria Geral de Bibliotecas da Unesp, onde iniciei minha formação como bibliotecária. Essa fase se relacionava com a grande mudança que viria com a transformação das bibliotecas, foi lá que eu fiz meu primeiro curso de informática num momento em que cada ficha impressa dos catálogos se tornava um registro bibliográfico legível por máquina. Configurava-se assim o importante marco da Coordenadoria em avançar na direção da automação das bibliotecas, esse momento também refletia o processo de automação de outros importantes sistemas de bibliotecas universitárias do país. Participar do início dessa história se tornou um diferencial na minha vida profissional. A seguir, já formada, em 1996 vim então trabalhar nessa mesma Coordenadoria rodeada por profissionais mulheres experientes que potencializaram minha vida profissional. Em 2006 me tornei chefe de grupo atuando na implantação da automação de todas as bibliotecas da Unesp e a partir de 2011 assumi a Coordenação buscando trazer inovação para que as bibliotecas contribuam com a formação de excelência da universidade.

    O estudo sempre presente em minha vida também me levou para o lado acadêmico e assim me tornei mestre propondo uma estrutura de categorias macroestruturais de assunto para bibliotecas digitais visando a organização do conhecimento em ambientes digitais e doutora ao propor um modelo de interação dos usuários com catálogos bibliográficos on-line a partir da Teoria Fundamentada (Grounded Theory) ampliando assim minha visão sobre os temas relacionados a tendências e a transformação digital que as bibliotecas, em especial, as universitárias, estão vivenciando em função das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Hoje, as bibliotecas, além de preservarem o conhecimento produzido pela universidade, se deparam com os desafios oriundos dos ambientes digitais, a revitalização de seus espaços físicos e o novo perfil de aluno que ingressa na universidade nos dias atuais.

    Minha mãe faleceu há pouco mais de cinco anos, mas conseguiu me ver como doutora, mais tarde coordenadora; e ficava muito feliz cada vez que eu viajava ao exterior para participar de congressos ou representar a universidade em diversos eventos.  

    Hoje compartilho com tantas outras meninas e mulheres o amor que precisamos ter em tudo o que somos e fazemos. Carrego minha eterna gratidão a todas as grandes mulheres, bem como alguns homens que foram verdadeiros exemplos de força e de coragem que me possibilitaram enxergar novos horizontes.

    A autora

    Flavia Maria Bastos, graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus Marília (1995), mestrado e doutorado em Ciência da Informação (linha de pesquisa Informação e Tecnologia) UNESP – Campus Marília. De 1996 a 2010 atuou como bibliotecária da Coordenadoria Geral de Bibliotecas (CGB) na implantação de tecnologias para a Rede de Bibliotecas da Unesp. 

    Em 2011 assumiu a Coordenação Geral das Bibliotecas da Unesp e desde 2013 é Coordenadora Executiva do Grupo Gestor da Política do Repositório Institucional da Unesp (GRI-Unesp). Atuou como docente colaboradora no Programa de Pós-graduação em Biblioteconomia da UNIRIO (2014 a 2017) e Curso de Pós-graduação em Planejamento e Gerenciamento de Sistemas de Informação, na Faculdades Integradas Coração de Jesus (FAINC), em Santo André/SP.