Isabella Sarmento experimentou o home office muito antes da sua expansão na pandemia. A jornalista, 32, trabalhava em uma empresa quando foi surpreendida por uma reestruturação institucional. A organização precisou mudar o local do escritório, deslocando-se para um novo edifício. O problema foi que os donos da empresa esqueceram um detalhe: escolher uma construção acessível para conseguir bem receber uma de suas empregadas, que é uma Pessoa com Deficiência (PcD). Isabella se viu em um prédio que acentuava sua dificuldade de locomoção. A empresa decidiu por retirar a jornalista do ambiente que não lhe cabia, transformando seu trabalho em home office. Afastada dos colegas, esquecida durante a mudança, Isabella pediu demissão do antigo emprego.
Para pessoas com deficiência, não é fácil se estabelecer no mercado de trabalho. Segundo o IBGE de 2019, apenas 28,3% da população PcD encontra-se empregada, destoando das 66,3% de pessoas sem deficiência. Assim, 7 a cada 10 pessoas que sofrem alguma deficiência e buscam trabalho, estão fora do mercado. Além disso, o salário desse grupo também se difere. A média salarial para PcDs é de R$1.639, equivalendo a dois terços da média de uma pessoa sem deficiência — R$2.619.
A história de Isabella representa apenas um caso dos muitos que acarretam pessoas com deficiência. A jornalista sofreu uma paralisia cerebral que trouxe sequelas, uma delas a dificuldade de mobilidade. Quando criança já precisou usar aparelhos que ajudassem a locomoção, mas crescendo adquiriu maior autonomia. Isabella ainda precisa de ambientes acessíveis para poder se deslocar livremente. Como PcD, a jornalista já presenciou diversos momentos em que se sentiu abandonada e desrespeitada por sua condição.
“Quando a gente fala de inclusão, ainda tem outras variáveis. Eu sou uma mulher branca que pode estudar em uma escola particular, uma das melhores de São Paulo. Isso ainda não deixou com que eu não passasse por questões de discriminação”, comentou Isabella, para a reportagem. A jornalista explica que entende ter vindo de um lugar de muito privilégio, mas que nem sua condição social conseguiu a blindar dos preconceitos que sofreu por ser uma pessoa com deficiência.
Ela relembra a situação que viveu, e vários outros momentos que mostravam o desacato da empresa com sua condição. Isabella conta que, quando ainda trabalhava presencialmente, a empresa continha uma van que levava os empregados para restaurantes na hora do almoço, mas ela não conseguia descer e subir da van sozinha. “Tem que ter muito cuidado. Essa palavra, inclusão, é real, ou algo só para o público de fora ver?” questionou a jornalista.
Edilayne Ribeiro é líder de projetos em inclusão na ASID Brasil. O projeto tem várias vertentes para acolhimento do público PcD do país, entre elas um plano de inclusão dessa população no mercado de trabalho.
A líder explica que existem algumas vagas destinadas à população com deficiência, mas não são bem anunciadas ou colocadas em lugares onde essas pessoas podem encontrar de fácil acesso. Os processos seletivos também ocorrem de forma discriminatória, com dinâmicas não acessíveis, ou plataformas sem acessibilidade. “Se for presencial esse processo seletivo, muitas vezes não há um cuidado com o transporte, ou a empresa fica em um lugar inacessível, ou não há recursos para pessoas com deficiência física, ou visual, por exemplo”, exemplifica.
Uma vez que a PcD é contratada, os problemas continuam. A líder conta que muitas empresas não têm uma preparação arquitetônica para que a pessoa possa se locomover e se sentir confortável na mesa de trabalho ou qualquer outro ambiente onde realiza suas atividades. Ela ainda expõe que diversas organizações não oferecem recursos importantes para a pessoa realizar micro-funções do dia a dia. “[A empresa] não oferece algum apoio especial nas cadeiras para a pessoa ficar mais confortável, ou apoio de pé para ela poder apoiar o pé ou a perna. Às vezes, a mesa de trabalho não está em um lugar espaçoso então fica muito desconfortável para sentar, se encaixar”, declara a especialista.
“Se ela [PcD] precisa transitar entre os setores, para falar com outras pessoas, resolver problemas ou entregar materiais, ou se ela precisa sair na rua para resolver algo, às vezes também não há essa facilidade, e a pessoa com deficiência encontra problemas nesse trajeto”, completa a especialista.
Além desses empecilhos, existem ainda os problemas atitudinais. Segundo Edilayne, ao ser contratada, a pessoa com deficiência constantemente lida com um líder que não é inclusivo ou não foi preparado para trabalhar com esse público. “Existem líderes que acabam superprotegendo ou negligenciando a PcD. Acabam sendo preconceituosos, direta ou indiretamente”, articula. A especialista argumenta que as instituições precisam ter projetos de inclusão, para melhorar o processo de integração do novo colega de trabalho.
“Se a pessoa se depara com uma empresa que não se esforça para se desenvolver na causa, isso vai impactar diretamente a rotina dela”, continua a líder. A falta de acolhimento desmotiva o trabalhador, que se sente deslocado e distante do seu time. No surgimento ocasional de dúvidas, a pessoa pode não se sentir segura e confortável para pedir ajuda a algum colega ou superior, atrapalhando o seu desempenho profissional.
Além da vida profissional, o emocional da pessoa com deficiência também fica afetado. Ter um emprego é fundamental para o sentimento de pertencimento e realização pessoal. A psicóloga Fernanda Rocha, idealizadora do Projeto interagir e Evoluir que trabalha com a inclusão social e autonomia de adultos com deficiência, explica. “Ter autonomia, ter independência, ter amigos, namorar, ter um trabalho… tudo isso são fatores que no geral fazem parte da vida adulta. Desde pequenos aprendemos isso socialmente em nosso ambiente, nas novelas, nos filmes… Quantos de nós já desejamos ser adultos quando adolescentes para alcançar tais coisas? E com as pessoas com deficiência não seria diferente. Eles possuem desejos, como qualquer outro indivíduo”.
Exercer uma função remunerada não aguça apenas os sentidos profissionais de um indivíduo, mas também outras questões sociais. No trabalho, muito se aprende sobre habilidades sociais e interação com outras pessoas. “O ser humano aprende o momento de fala e de escuta, empatia, manejo de emoções, entre outros”, exemplifica Fernanda. “Isso tudo tem um impacto gigantesco na autoestima e bem-estar desses indivíduos”.
As dificuldades de conseguir um emprego acabam abalando emocionalmente as pessoas com deficiência. Para a psicologia, essa prática discriminatória afeta negativamente a participação do PcD na sociedade. As portas se fechando constantemente nesse ramo causam sentimentos de insuficiência, frustração e uma quebra na autoestima do indivíduo.
Edilayne retoma que é importante que as empresas estejam abertas a entender mais sobre o tema. “Começa por aí, querer conhecer, desenvolver seu time. Começa com iniciativas de inclusão dentro da empresa”, elucida. Os processos seletivos e o acompanhamento profissional devem ser modificados.
No Brasil, essa mudança, apesar de lenta, já começou. Foi a constituição de 1988 que determinou proibido “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. Já em 1991, a primeira lei de inclusão de PcD’s no mercado de trabalho surgiu. Pela Política Nacional de Cotas, a Lei de Cotas, “a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas”. Mais recente, em 2015, a Lei No 13.146 regulamentou o direito ao trabalho da PcD. Cada vez mais as empresas estão se adaptando a essas legislações e aprendendo como incluir de forma segura uma pessoa com deficiência no ambiente de trabalho.