Por Onilda Alves do Carmo (UNESP)
A trajetória de luta das mulheres tem cores, tem raça, tem sexualidades, tem buscas, tem escolhas, tem desafios…
A minha trajetória de luta, apesar da consciência de minha branquitude que, muitas vezes deixei revelar os privilégios de minha cor – porque ela, como contradição do racismo, é estrutural – tem um pouco de tudo isto. Filha de família católica, de doze irmãos, mãe humilde, porém, muito sábia, que não protestava, mas, sabia nos ajudar em momentos de tensão.
Na juventude, minha militância se deu primeiro numa organização extremamente conservadora, depois, logo em seguida, militei no movimento de jovens, nesse movimento pude ler textos da teoria crítica, pois tínhamos um sacerdote bastante crítico. Acredito que isto foi me despertando. Paralelo a essa militância cursei matemática.
Mudança de rumo – em 1977 fui cursar serviço social na Faculdade de Serviço Social de Lins, naquele momento, junto com o Curso da PUC, um dos melhores cursos de serviço social do país. Ao sair de viagem para Lins, ouvi do meu pai: “filha minha só sai de casa, casada ou no caixão, do contrário, vai virar “mulher da vida”. Nesta faculdade me tornei mulher militante, livre e solidária com todas as mulheres e, de forma particular, com as mulheres trabalhadoras das classes populares. Durante os cinco anos que passei em Lins, pude participar de vários espaços de luta. Participei da criação do Partido dos Trabalhadores em Lins e também pude militar no movimento de mulheres que reunia trabalhadoras domésticas, lavadeiras, camponesas, por meio de um Projeto de Organização Popular realizado pela Faculdade. Por meio deste projeto conheci mulheres que, no dia a dia, lutavam por direitos: por salários, preços justos pela lavagem da roupa, por creches, por escolas mais próximas e de qualidade, por postos de saúde e por um projeto de sociedade mais humana, mais inclusiva e com mais igualdade. Aí também fiz minhas primeiras leituras sobre as obras de Heleiet Saffioti, Eva Blay, entre outras, para compreender o porquê as mulheres não tinham seus direitos humanos garantidos – não seriam elas humanas?
Araguaia (MT)
Depois de algumas andanças pela região do Araguaia onde conheci mulheres e homens militantes que entregavam suas vidas para defender suas terras, seus patrimônios, suas culturas e seus direitos de viver em paz – eram camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas que se reuniam com a ajuda da CPT para falar de suas lutas, para analisar a conjuntura e também para celebrar e adquirir forças e seguir nas lutas. Assim descobri que a luta das mulheres é também a luta pela terra, pelas águas, pelos rios, pelo ar, pela natureza como uma única unidade que gera e conserva a Vida.
São Paulo
Em São Paulo, retomei minha militância na cidade. Trabalhei em um grupo que assessorava a Comissão de Fábrica da Ford- Ipiranga. Na sequência, fui trabalhar no CESEEP – Centro Ecumênico de Formação e Educação Popular – que oferece cursos de formação para militantes cristãos em movimentos populares católicos e protestantes de toda a América Latina. Foi aí, em fevereiro de 1988, que escolhi o militante chileno – Claudio Humberto Venegas Muñoz – meu grande companheiro de vida, de lutas, “mi amor, mi complice y todo” (Isabel Parra). Nos casamos, tivemos uma filha linda, perdoem pela corujice, a Maria Elisa. Desta forma, aos 39 anos, deixei de ser tia e me tornei mãe. Muitos desafios, ainda que sempre com a parceria do Claudio: foram anos de muito trabalho, aprendizado, mas também de muitas alegrias e realizações. Nesse período, além de trabalhar, cuidar da filha, estudar, também coordenava, um curso realizado em mutirão, com a parceria com a PUC, para mais de 300 pessoas vindas de todo o país. Linda experiência de formação ecumênica, popular, realizada com muito estudo, com arte e com muita festa.
Ainda no CESEEP também conheci mulheres fortes, militantes de toda a América Latina e do Caribe. Mulheres e homens que desde os anos 60 entregavam suas vidas para a libertação deste grande continente americano, levando adiante o ideário de Simón Bolivar, José Martí, San Martin — o de construir a GRANDE PÁTRIA LATINO-AMERICANA. Foram tantas as mulheres que me inspiraram, entre elas, Rigoberta Menchú, militante das comunidades eclesiais de base da Guatemala. Exilada no México, trabalhou pela paz no seu país. Em 1992 ela veio para o curso latino-americano de militantes. E durante o curso, ela recebeu a notícia de que fora agraciada com o Prêmio Nobel da Paz de 1992. Foi uma grande alegria para ela e também para todos e pudemos celebrar com ela aquele momento. Sem demérito de tantas outras, quero citar duas companheiras de equipe – Regina Jurckewicz e Pepita Buendia – mulheres me ajudaram a aprofundar, ainda mais, a perspectiva feminista na minha militância. Estive neste centro por 19 anos, durante os quais pude conhecer e viver experiências profundas com militantes dos movimentos populares revolucionários da Argentina, Chile, El Salvador, Mexico, Guatemala, Nicarágua, Uruguai, Cuba, entre outros. Deste modo posso assegurar – sou uma mulher privilegiada por ter vivido intensamente momentos e experiências que o universo conspirou.
Ainda em São Paulo, pude fazer meu mestrado no Programa de Ciências Sociais na PUC – sob a orientação do Prof. Luiz Eduardo Wanderely e aí fazer uma disciplina com a Profa. Saffioti. Foi então o descortinar de uma perspectiva ainda mais profunda na minha trajetória: compreendi que o machismo é a ideologia do sistema patriarcado, que apropriada pela lógica capitalista, contribui para aprofundar os processos de exploração, expropriação e dominação das mulheres.
Assim, pude perceber que as mulheres com as quais eu trabalhava e, que estavam, lado a lado com os homens, à frente das lutas pela terra; nas portas das fábricas fazendo piquetes; fazendo greves; na porta das prefeituras exigindo creches, escolas, postos de saúde, tinham uma luta ainda maior – a luta contra o machismo e o patriarcado. Ainda que seus companheiros estivessem com elas nestas frentes, no cotidiano de seus lares – eles eram “os senhores” – “imagem e semelhança de Deus” que, conscientes ou não, faziam parte de uma organização de homens, constituída para dominar as mulheres e mantê-las submissas.
Franca UNESP
Em 2005, cheguei na UNESP, onde fiz o doutorado no Programa de Pós graduação em Serviço Social e em 2010 ingressei como docente. Em 2012, graças a um projeto do Prof. José Fernando, com financiamento da CAPES, realizei meu grande sonho – visitar Cuba. Fiz meu pós-Doc na Universidade Havana. Esta experiência foi muito intensa, enriquecedor, mergulhar na vida do país, conhecer suas particularidades e, além disto rever militantes que conheci nos anos 1980, no CESEEP.
Na Unesp minha perspectiva feminista foi se aprofundando no entendimento de que a luta feminista é uma luta anticapitalista antirracista, antihomofóbicaLGBTOI+. Isto só foi possível pelas parcerias e compromissos com es alunes, com outras docentes: Raquel Sant’Ana, Edvânia, Patrícia, Ana Gabriela, Karina, Regina. Três grupos de extensão comunicativa e popular que cativaram meu coração e renovaram meu compromisso de militância – NATRA; MARGARIDA ALVES e GAPAF. Estes grupos me ajudam a aprofundar as três temáticas com as quais estudo, trabalho e milito: questão agrária, relações de gênero e educação popular – eles me ajudam a aprofundar cada vez mais, o meu compromisso com todas as mulheres pretas, brancas, lésbicas, não binárias, trans, enfim com todes, nas lutas contra todas as formas de opressão e por um projeto de sociedade que permita que todes, todas, SEJAMOS – o que quisermos SER. Por tudo sou uma mulher privilegiada.
A autora
Onilda Alves do Carmo possui graduação em Licenciatura Em Matemática pela Faculdade Riopretense de Filosofia Ciências e Letras (1974), graduação em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social de Lins (1981), mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e doutorado em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008).
Pós-doutorado na Facultad de Filosofia e Historia Universidad de La Habana – Departamento de Sociologia (2012). Atualmente é professor assistente doutor – da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Sociologia e Serviço Social, com ênfase na Questão Social, atuando principalmente nos seguintes temas: questão social – política de assistência social – movimentos sociais – participação – educação popular – direitos sociais – relações de gênero e questão agrária – desigualdade social – preconceito. Fez parte da direção nacional da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS, como suplente da Presidência na gestão 2015/2016. Atualmente exerce a suplência da direção da Regional Sul II da ABEPSS – Gestão “Aqui se respira luta” – 2020 – 2022. (Fonte: Currículo Lattes)