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Posso, Unesp?

    Por Bárbara E. López (UNESP)

    Botucatu. Dezembro de 2005. Eu, aluna, medicina, Unesp. Faltava só um ano pra pegar o canudo. Acidente automobilístico. Às vezes me perguntam o que senti. Foi como se tirassem meu corpo da tomada. Melhor amiga no banco de trás, segurando minha cabeça. Resgate. Meu hospital, meu local de aprendizado. Amigos puxando a maca. Amigos chorando no Pronto-socorro. Residentes e professores deixando os postos de trabalho. Querem saber, querem me ver. Funcionários beijando minha testa. Minha melhor amiga triste, quer estar comigo. Não pode. Passa por exames, quadro delicado. Vou pra UTI. Mãe, pai, irmão chegam. Corredores infinitos. Professores contam. Tetraplegia. Cirurgia. Apenas conhecidos no centro cirúrgico. Cirurgia de novo. Natal. Brasília. Hospital de reabilitação. Realidades. Alta. São Paulo. Adaptação. Felicidade sem fim, melhor amiga recuperada. Abril, amigas chamam. Tem competição esportiva chegando. Volto pra Botucatu? Volto! Vou pra competição? Vou! 

    Acessibilidade não é apenas reservar vaga, construir rampa. É também lidar com questões profundas. Vamos entregar um diploma de médica a uma aluna que fica tetraplégica terminando seu 5° ano de graduação? Como esta aluna vai poder exercer sua profissão? Curiosamente a resposta para estas perguntas origina-se de uma questão primordial, essencial: qual é o papel do médico? Como a Unesp responderia a estas perguntas definiria a minha trajetória.

    Posso voltar às aulas, Unesp? Pode! Posso pegar o canudo, Unesp? Pode! Posso fazer residência, Unesp? Pode!

    Eis meu álbum de memórias hospedado no cérebro. Vejo o técnico de enfermagem da UTI subindo a escada pra tentar desviar o fluxo do ar condicionado que me incomoda. As técnicas de enfermagem lavando meu metro de cabelo com a empolgação de um salão de beleza. O fisioterapeuta que deixa a folga pra me ajudar a desafogar. O professor que está de plantão na UTI e puxa uma cadeira pra me fazer companhia durante a insônia. Lá tem cenas que eu nem mesmo presenciei. As palavras seguras do professor que me opera dirigidas à minha família. O rosto vermelho do meu melhor amigo, não consegue segurar o choro. Fora da UTI, meus amigos acompanham minha família. Puxam papo com meu pai, seguram a mão da minha mãe, fazem amizade com meu irmão. Meus pais deixam de ser “os pais da Bárbara”, agora eles são os “tios”. De volta à graduação, minhas amigas me colocam no carro, vamos pra aula, vamos pro churrasco, vamos pra festa! Amigos conduzem minha cadeira no hospital, colocam o estetoscópio nos meus ouvidos pra que eu possa auscultar os pacientes. Meu professor tímido assume a pilotagem: “também tenho que aprender a conduzi-la”. 

    Eu vejo o entusiasmo do meu preceptor da residência falando sobre todas as adaptações que ele coordenava pra me receber. Meus professores da Saúde Pública, que expandem meus conceitos de saúde, incentivam-me a seguir carreira acadêmica. Na residência, funcionários recebem-me com carinho. Conheço minha primeira “chefe” (líder, na verdade), de quem me tornei amiga. Sigo pro mestrado, orientador deposita toda confiança no meu trabalho. São incontáveis gestos, impossível registrar todos aqui, comporiam um livro. Algumas pessoas mereceriam capítulos inteiros, algumas já não estão aqui para ler.

    Acessibilidade é uma construção coletiva e contínua. É assumir o problema do outro como seu. É recordar o poder e o impacto de uma instituição de ensino na vida de seus alunos. É acreditar que uma condição adversa e irreversível pode ser amenizada quando uma comunidade acolhe e abraça.

    No fim de janeiro deste ano, minha primeira líder faz-me um convite inesperado: integrar sua equipe, composta por um grupo de mulheres incríveis, competentes e que trabalharam incansavelmente nestes últimos dois anos de pandemia. O que elas fazem? Cuidam da saúde da comunidade unespiana. Sinto-me honrada, sou parte de um ciclo belíssimo: vou ajudar a cuidar da comunidade que ajudou a me cuidar.

    Minha família, meus amigos, meus professores, meu universo, minha gratidão.

    A autora

    Graduação em Medicina, Residência em Medicina Preventiva e Social, Mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

    Atualmente trabalha na equipe de Coordenadoria de Saúde e Segurança do Trabalhador da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).