Introdução
O debate sobre relações étnico-raciais é permeado por uma série de termos e conceitos. Como a própria expressão “relações étnico-raciais” indica, trata-se uma questão relacional, isto é, das dinâmicas estabelecidas entre os grupos raciais por meio do racismo. Apesar disso, quando se fala em “raça”ou “racismo” costuma-se focalizar os grupos raciais oprimidos pela estruturação racista da sociedade, deixando de lado o grupo racial privilegiado por essa estruturação: o grupo branco.
Caso queira fazer o download deste guia, acesse o link: (PDF) Guia de reconhecimento sobre branquitude.
Nota: Este guia foi desenvolvido utilizando a linguagem neutra de gênero como forma de combater o sexismo linguístico. Portanto, não utilizaremos substantivos generificados.
Racismo e hierarquia racial
O racismo não se refere à uma questão moral, patológica ou de “falta de educação”. Racismo é um sistema de opressão que estrutura a sociedade e, portanto, estrutura os indivíduos que a compõem.
Pessoas brancas podem não ser favoráveis à estruturação racista da sociedade, porém, participam e reforçam o sistema racista que mantém seus privilégios por pertencer ao grupo racial branco.
Os grupos raciais operam em uma lógica de hierarquia organizada pelo racismo. O grupo racial branco ocupa a posição mais elevada desta organização e coloca os demais grupos raciais em uma posição de inferioridade e subalternidade.
A posição de poder ocupada por pessoas brancas só existe porque houve – e há – exploração dos demais grupos raciais.
O que é ser branque?
Ser branque significa possuir um conjunto de características físicas que identifica uma pessoa como branca. Porém, mais do que isso, ser branque significa ocupar uma posição social de poder simplesmente por possuir tais características.
Ser branque é pertencer a um grupo racial privilegiado pelo sistema de raças e pelo racismo a ponto de poder não se perceber enquanto pertencente a esse grupo.
Ser branque é não precisar se pensar enquanto sujeite racializade, pois a estruturação racista das sociedades coloca pessoas brancas em uma posição social supostamente universal.
O pertencimento étnico-racial de branque, a posição de superioridade racial ocupada por este grupo, a forma como pessoas brancas se comportam e perpetuam o racismo mantendo privilégios sociais, econômicos, políticos e subjetivos é chamado de BRANQUITUDE.
Branques e branquitudes
Raça é uma categoria relacional. Isso significa que a compreensão sobre racialidade também inclui aspectos geográficos.
Uma pessoa entendida como branca no Brasil pode não ser entendida como branca nos EUA ou na Europa, por exemplo. Ainda assim, no Brasil essa pessoa ocupará uma posição social, econômica, política e simbólica privilegiada.
É imprescindível compreender como as relações de poder sociais se estabelecem em nosso território produzindo e perpetuando opressões e privilégios.
O Brasil é um país constituído pela violência sistemática contra negres e indígenas e pela supervalorização sistemática da raça branca. Ê branque brasileire é branque.
Privilégios
Todas as experiências perpassam a raça. Isso significa que, em uma sociedade em que o racismo é estrutural, dependendo do grupo racial ao qual uma pessoa pertence, haverá diferenças de acesso aos sistemas de educação e saúde, oportunidades e condições de trabalho, forma de tratamento, formas de se relacionar, etc.
Pessoas identificadas como brancas compartilham características e símbolos que lhes conferem vantagens sociais denominadas “privilégios”.
Privilégio não significa necessariamente ausência de dificuldades. Privilégio significa que, mesmo enfrentando outras dificuldades, pessoas brancas ocupam uma posição social de superioridade em relação aos demais grupos raciais.
Privilégio simbólico
Um dos exemplos mais significativos do privilégio de ser branque é a permissão concedida à pessoas brancas de serem entendidas enquanto sujeites singulares e múltiples. Por outro lado, pessoas pertencentes a outros grupos raciais são entendidas como representantes de todo o grupo ao qual pertencem.
Pessoas brancas cometem algum equívoco e são tratadas como indivíduos em situações específicas. Pessoas negras ou indígenas cometem o mesmo equívoco, porém são tratadas como grupo e seus equívocos entendidos como “naturais” aos grupos aos quais pertencem.
Privilégio subjetivo
Concepções racistas sobre superioridade e inferioridade perpassam aspectos estéticos, morais e intelectuais.
Pessoas brancas são consideradas “naturalmente” bonitas, de boa índole e inteligentes. Essas ideias, no entanto, não se sustentam na realidade. Não existe evidência de que pessoas brancas são “naturalmente superiores” que outras pessoas pelo fato de serem brancas.
O que acontece é a supervalorização social dos atributos físicos de pessoas brancas consideradas como o padrão a ser seguido; associação do grupo racial branco a comportamentos considerados positivos; e maior oportunidade de estudo e aperfeiçoamento intelectual para pessoas brancas.
É importante compreender que as estruturas de poder social atuam independente de preferências particulares dos indivíduos que compõem a sociedade.
Individualmente, uma pessoa pode considerar outros aspectos físicos mais interessantes que os socialmente estabelecidos. Isso, no entanto, não altera concepções produzidas e disseminadas pela hierarquia racial.
Privilégio material
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A concentração de renda e terras nas mãos de pessoas brancas é um efeito direto da estruturação racista do país.
Pessoas brancas em geral têm remuneração salarial mais elevada que pessoas negras ou indígenas mesmo tendo recebido a mesma formação profissional ou ocupando o mesmo cargo.
Espaços e posições de poder e decisão que vão desde pequenas empresas até a Presidência do país são ocupados majoritariamente por pessoas brancas.
Esses exemplos refletem a materialidade da herança racial branca oriunda de processos de exploração do trabalho de pessoas negras e indígenas. Um desses processos de exploração foi a escravização que no Brasil durou cerca de 400 anos.
Branquitude e Universidade
Quantas pessoas brancas estudam na sua turma? Quantas pessoas brancas existem no seu curso? Quantos autories branques você estuda? Quantes professories branques dão aula para você? Quantas pessoas brancas estudam no mesmo campus que você? Quantas pessoas brancas estudam na mesma Universidade que você? Quantas pessoas brancas estão no ensino superior no Brasil?
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE divulgada em 2019, a população branca brasileira representa cerca de 43% da população do país. Embora do ponto de vista percentual pessoas brancas sejam menos da metade da população do Brasil, nas Universidades públicas há a predominância dessas pessoas nas categorias discente, docente e servidories técnique-administratives.
Não se trata de “meritocracia” ou “maior capacidade intelectual” de pessoas bran- cas, mas sim de um efeito da hierarquia racial organizada pelo racismo que possi- bilita que pessoas brancas tenham maior acesso e permanência no sistema de ensino, incluindo o nível superior.
O acesso privilegiado ao sistema de ensino se reflete também na possibilidade de pessoas brancas ingressarem no mercado de trabalho formal, incluindo, por exemplo, os cargos públicos existentes nas Universidades.
Outra expressão do privilégio branco nas Universidades é a negação ou inferiorização de conhecimentos não-brancos. Somos ensinades a pensar os processos históricos e contemporâneos da Humanidade com base em uma perspectiva brancoeurocêntrica da História.
Conhecemos o Brasil, por exemplo, a partir do “descobrimento” europeu. O sistema de ensino, em todos os seus níveis, não abrange ou abrange de maneira precária e estereotipada as concepções de mundo e experiências de pessoas não-brancas, sobretudo negras e indígenas.
Racismo e preconceito
Racismo é um sistema de opressão. Racismo implica poder.
Preconceito racial é uma opinião preconcebida sobre um grupo racial que pode ou não ser uma manifestação do racismo.
Expressões direcionadas a pessoas brancas como, por exemplo, “palmito”, “branquele” e “leite azedo”, embora possam ser ofensivas para algumas dessas pessoas, não são expressões racistas.
Não existe estrutura de poder que possibilite outros grupos raciais oprimir pessoas brancas. Portanto, “racismo reverso” ou “racismo contra pessoas brancas” não existe.
Culpa e responsabilidade
Pessoas brancas confrontadas por sua racialidade podem desenvolver sentimentos de culpa, negação e vergonha. Esses sentimentos, no entanto, impedem a criação de responsabilização frente ao racismo e ao lugar social ocupado por essa racialidade.
Geralmente pessoas brancas acreditam que ou vão “ajudar” pessoas negras e indígenas num ímpeto salvacionista; ou nada podem fazer a respeito do lugar que ocupam na dinâmica racial. Estes são alguns exemplos de crenças equivocadas e improdutivas formuladas pela branquitude.
Responsabilizar-se, no entanto, pelo entendimento da construção de sua racialidade e dos privilégios herdados que compõem seus modos de vida podem ser instrumentos para formulação de reposicionamento social e enfrentamento ao racismo.
E agora?
O entendimento da branquitude enquanto constituição material, simbólica e subjetiva de pessoas brancas é um processo sem fim. As sugestões aqui apresentadas não constituem um passo a passo que, ao ser cumprido, resolverá a questão do racismo ou tornará pessoas brancas “menos racistas”. O reposicionamento social da branquitude está além de atitudes individuais, pontuais ou temporárias.
- Ouça:
Pessoas brancas estão acostumadas a serem referência e ocupar um lugar central no mundo. A escuta é um exercício necessário ao aprendizado daquelus que preservaram seu direito de fala em detrimento do direito de outres. - Eduque-se:
O conceito de letramento racial consiste em educar-se na teoria e na prática enquanto pessoa branca. Isso significa estudar o vocabulário referente à temática racial, estudar sobre racismo, entender que o lugar ocupado por pessoas brancas é consequência de um processo histórico de violências contra outras pessoas, assumir privilégios, avaliar discursos, posicionamentos e crenças pessoais. - Convoque outras pessoas brancas:
É responsabilidade de pessoas brancas convocar outras pessoas brancas a letrar-se racialmente. Não cabe aos grupos raciais oprimidos educar o grupo que os oprime. - É sua obrigação fazer o mínimo:
O racismo é um projeto genocida em desenvolvimento há séculos. Pensar em ações de enfrentamento ao racismo em âmbito individual ou coletivo é dever de qualquer pessoa que se propõe a pensar em justiça social. - Não busque validação em grupos não-brancos:
Responsabilize-se por seu processo de aprendizado teórico-prático. Pessoas não-brancas estão criando diariamente formas de viver em uma sociedade racista, não seja mais um obstáculo. Questione-se entre seus pares. - Atenção à forma como você acessa produções não-brancas:
A postura de “consumo” indiscriminado de produções não-brancas é tão racista quanto a invalidação dessas produções. Questione-se: a intenção dessa busca por outros conhecimentos está relacionada à possibilidade de alteração de seu modo de estar no mundo ou à tentativa de se proteger de seu racismo? - Ações cotidianas e status:
A expressão “antirracista” tem sido utilizada em mobilizações circunstanciais e de maneira esvaziada. É próprio da branquitude utilizar expressões desse tipo na tentativa de se desvincular dos sentidos negativos que ela assume. Ser racista é algo inerente a quem é beneficiade pelo racismo, não se trata de “ser mau”. As possibilidades de construção de estratégias de enfrentamento ao racismo devem ser pensadas e colocadas em prática em ações cotidianas e permanentes.
Créditos
- Autoras:
- Amanda Oliveira Coelho;
- Fariza Barreto Alvez;
- Mariana Mendonça Cabeça.
- Versão em áudio:
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Roteiro: Barbara Viotto;
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Locução: Vinícius Nascimento;
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Edição: Ynara Bien;
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Coordenação geral: Professora Suely Maciel.
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